DA CATEDRAL E DOS HUMANISTAS
Uma rápida reflexão sobre a catedral e a nossa cena
Olavo de Carvalho expõe em seu livro O Jardim das Aflições que o verdadeiro significado de humanismo não é o amor pelo homem, mas o amor pelas humanæ litteræ, “letras humanas”. É a crença quase gnóstica no poder metafísico de relíquias da Antiguidade — cartas, testamentos, livros, manuscritos, pinturas, estátuas, mesmo pedaços desses artefatos ou a mera alegação de serem datados de uma época anterior à Renascença e à Idade Média serviam como prova de força mágica e legitimidade a qualquer pensamento presente.
“A que se costuma chamar humanismo, um termo tremendamente equívoco, pois um humanista da Renascença tem menos amor pelo ser humano, concreto e vivente, do que pelos textos, pelos documentos, pelos velhos diplomas empoeirados e pelas velhas línguas. ‘Humanismo’ não vem de amor pelo homem, mas pelas humanæ litteræ, ‘letras humanas’, o que significa apenas qualquer texto que não sejam as Sagradas Escrituras. Qualquer coisa serve: uma carta, um contrato de arrendamento, uma lei promulgada pelo rei de um reino extinto — tudo é documento da fala humana, e como tal é desejado, conservado, estudado, analisado. ‘Humanismo’ significa o espírito museológico: o amor aos documentos vem junto com a mania das coleções — selos, moedas, pedaços de velhas estátuas. O impulso de colecionar surge de um misto de motivos estéticos e ocultistas: atribui-se aos fragmentos de estátuas um poder mágico; aos homens do século XV, sobretudo na Itália, sua utilização em rituais de bruxaria oferecia expectativas mais promissoras que a de olhos de sapos, patas de corvos, unhas e cabelos humanos; os aficionados da bruxaria pagam grossas quantias por um dedo de Vênus, por um cotovelo de Mercúrio.” (O Jardim das Aflições, p. 147)
Deste movimento quase carbonário, que surge a partir da Renascença e busca se contrapor aos universitários medievais, nasce o livre-pensador, o autodidata, o sábio palaciano que serve de contraponto dos poderes temporais ao universitário escolástico, ao sacerdote de letras da universidade medieval. Enquanto o universitário renega sua terra, renega a “saudade da cabana em que nasceu”, conversa em uma língua compreendida entre os seus (o latim) e lê e reproduz o discurso conservado, copiado e expandido nos muros daquelas catedrais, o autodidata cria, traduz, copia, falsifica, cita e consome o que ele mesmo resgata, cria ou copia — em especial o que servir de antagônico ao ensinamento vigente nos muros da fortaleza que faz sombra ao palácio e que é um edifício eterno quando comparado à sua cabana, burgo ou vila de nascimento.
“O novo modelo de homem letrado, que se interessa por essas coisas, é bem diferente do intelectual medieval. Este era, na essência, um universitário, um membro da orgulhosa casta acadêmica que, escorada no aplauso das hordas de estudantes, desafiava os reis e o Papa. A casta era internacional, formada de homens que abandonavam seu torrão natal para instalar-se nos grandes centros universitários onde se falava uma língua supranacional, o latim, e onde conviviam em pé de igualdade franceses, irlandeses, italianos, saxões, totalmente esquecidos de suas diferenças de origem. Para o letrado, o amor à pátria era um atavismo condenável, um resíduo de mundanismo, do mesmo modo que toda nostalgia do passado, da origem familiar, da paisagem natal: ‘Nada se pode fazer’, escrevia Hugo de S. Vítor, ‘pelo aluno que tem saudades da cabana onde nasceu’. O novo intelectual é, ao contrário, um membro ou servidor da casta palaciana. Vive na corte, já não entre seus colegas de ofício, unidos pelo comum desprezo às suas origens nacionais e de classe, mas entre príncipes e duques, damas e pajens, soldados e cortesãs. Sua atmosfera verbal já não é a seca terminologia técnica da dialética escolástica, mas a da conversação amena e elegante em língua nacional, recheada de floreios bajulatórios. A diferentes classes sociais correspondem diferentes mestres: os medievais tinham encontrado os seus em Platão e Aristóteles; o humanista vai inspirar-se em Ovídio, Horácio, Virgílio e, sobretudo, em Quintiliano.” (O Jardim das Aflições, p. 147–148)
Curtis Yarvin utiliza o termo catedral (acho mais bonito A Catedral, enfim) para se referir ao consórcio midiático-oligárquico que serve de legitimação e controle de discurso ao Regime que governa o Ocidente e, devo adicionar, a periferia em que vivemos. Ele utiliza este termo pois, como se infere dos excertos de Olavo, durante a Idade Média eram nas catedrais que a vida cultural das cidades e países fervilhava. Eram lá que aconteciam os cultos públicos, onde se dirigiam as festas populares e religiosas, mas também, eram nesses muros que se conservava o conhecimento antigo, que corria constantemente o risco de ser perdido em ataques bárbaros e guerras nacionais pela frieza do aço e pelas chamas dos archotes.
Dessa forma, criou-se um monopólio da produção, conservação e distribuição do conhecimento, de modo que se definiu o que poderia ser visto pelos leigos ou não, o que podia ser comentado pelos membros da cúria e da cátedra e o que deveria ser esquecido ou até forjado. Esse monopólio servia a interesses políticos claros (os do clero e do patriarca de Roma) e era impensável questionar a veracidade de qualquer declaração advinda das torres das catedrais — vale citar a Carta de Constantino, utilizada para legitimar a primazia do poder espiritual do Papa em relação ao poder temporal dos reis e imperadores.
Qualquer questionamento ou tentativa de educação fora dos padrões estabelecidos pela cúria era considerado ridículo quando feito publicamente, sendo ainda mais ridícula a necessidade de se esconder ou questionar sozinho, em meio à luz de velas e sussurros. Mas era esta a condição para se escapar do escrutínio e da penúria.
É através de ordens de mágicos, das corporações alquímicas e dos interessados nas ciências ocultas que surgem as primeiras produções e aventuras fora das muralhas. Tais agrupamentos eram, por vezes, financiados publicamente ou discretamente pelos magistrados temporais. Nas cortes francesas, alemãs e italianas, valendo-se do interesse alquímico no século XV e, posteriormente, da rebelião aberta dos reis e príncipes contra o clero nos séculos XVI–XVII, começou-se a produção autodidata e, por vezes, clandestina e/ou anônima. A utilização de pseudônimos, a produção in loco, a distribuição de panfletos e a leitura de autores outsiders foi o primeiro vislumbre dos séculos recentes do samizdat, que seria mais tarde popularizado durante a tirania soviética.
Os patronos e mecenas alemães e italianos foram vitais nesse processo. Os patronos alemães permitiram a produção de textos religiosos e históricos protestantes nas abadias e mosteiros germanos, bem como o uso mais livre da prensa, enquanto os mecenas italianos financiaram e protegeram artistas e pensadores que imitavam o estilo greco-romano e floresciam ideias devassas aos olhos da catedral e que eram consideradas heréticas, tal como as alemãs, mesmo que por vezes não tratassem de religião.
Estes atos eram considerados heréticos não por sua natureza gnóstica, científica, ateia, pagã, protestante ou afins, mas por serem discursos e obras fora dos limites da catedral.
Nessas catedrais, homens do mundo todo se reuniam e se tornavam parte de uma universalidade de conhecimento filosófico, teológico e linguístico. Comunicavam-se em uma língua universal conservada e categorizada entre seus colegas e irmãos. Era visto como sinal de prestígio ser aceito e viver ali, especialmente pelos camponeses e mais ignorantes; era visto como consagração do conhecimento ter lido e aprendido o que se dizia nas aulas, nos livros e nos manuscritos da cátedra.
Não muito diferente de hoje. Na catedral de Yarvin arrastam-se acadêmicos, especialistas em mil e um escritos e papers com pouco contato com o real (lembrem-se da especialista em segurança pública com claros sinais de psicose), jornalistas porta-vozes de governos e corporações, estrelas políticas prudentes e sofisticadas, educadas nas universidades americanas, sinhôres doutôres didireito educados na Sorbonne ou na USP com grande saber crítico-jurídico que — para citar o puer aeternus tão amado por estes — são “caboclos querendo ser ingleses”. O inglês é a língua universal que substituiu o latim nesse arranjo. Aristóteles e Platão foram substituídos por Marx e Rousseau — pois, como na luta entre Aquino e Duns Scotus, há o embate entre os alinhados ao socialismo e os alinhados ao liberalismo intransigente. Entre os arautos da democracia em seu pior sentido possível (a turba parasitária) e os defensores da sociedade aberta dos amorfos diversos, em detrimento da pólis higiênica.
Vale dizer que - pela própria Catedral moderna ter surgido a partir da dissidência à Catedral medieval católica - há entre a cúria moderna o mesmo louvor e crença metafísica em objetos e escritos do passado: O Contrato Social de Rousseau, a tripartição de poderes de Montesquieu, qualquer diário de Marx e Lênin, os relatórios de órgãos supranacionais como a ONU, os pareceres abolicionistas e garantistas de magistrados iluminados, as teorias críticas italianas e alemães, os modismos americanos, entre outros, são objetos de crença fiel e intransigente por parte da Catedral - qualquer questionamento é heresia, qualquer contraponto é blasfêmia. Os Inquisidores são, hoje, senhoras de cabelo colorido e óculos invertido - e os padres são transsexuais periféricos.
No Ocidente há, a meu ver, um movimento similar ao contraponto da velha catedral. Na Europa, há os magos — os que trabalham nos escombros, os que se organizam na franja da muralha e nas lojas ocultas — da Nouvelle Droite, cujo pensamento muitas vezes se mistura com religião e seus signos (de Benoist, Eliade, Guénon, Evola são, para citar, autores bastante discutidos por ali). Nos EUA há a aliança tácita entre o tech e os autodidatas, os samizdat.
Yarvin é um samizdat diretamente envolvido com isso. Há, também, Peter Thiel e sua Thiel Fellowship. De alguns anos para cá, Musk e mesmo Zuckerberg (eu ainda lembro dos expurgos de 2015–2018 no Facebook, senhor Zuck) mostraram-se altamente tolerantes a esses dissidentes heréticos. A Amazon e editoras independentes passaram a publicar autores que estavam tão soterrados quanto Virgílio — para citar, a título de exemplo, Pierre Drieu de La Rochelle e Jean Raspail.
O movimento nos EUA é o mais interessante, pois é semelhante aos autodidatas que encontravam proteção, prospecção e ganhos diretos no trato e convívio com a corte e os burgueses e aristos. É o financiamento, a condescendência, o entusiasmo e a tolerância a essas ideias heréticas fora dos limites da catedral que fazem com que toda uma cena floresça. É a tolerância das big techs com os espaços virtuais e bolhas, junto ao entusiasmo declarado de pessoas como J.D. Vance. Mecenas e patronos estão ao horizonte, alguns já atuando.
Mas isso é no mundo que importa.
Estamos na periferia do Ocidente, muito distantes e muito desimportantes para que Lorenzo de Médici do Silício olhe para nós, mas afundados demais nas terras obscuras para escapar do Olho de Sauron ou dos emissários e da influência da catedral. Estamos muito distantes das bordas do Leviatã, e as costas de Behemoth nos deixam muito longe do chão e insuficientemente perto do céu. O que quero dizer com todo esse floreio? Que a catedral está bastante triunfante por aqui.
Contudo, é o sincretismo e a falta de percepção característicos de nosso povo e de nossas elites que nos servem de triunfo. É da desordem de Macunaíma que há um sopro de força. Organicamente, excessivamente importados, talvez convencidos de que são absolutamente novos e, portanto, certos — e, ao mesmo tempo, blasé — surgiram alguns autodidatas com toda sua insolência, não atacando a catedral e pregando suas 95 teses como tentaram a geração anterior (os filhos diretos de Junho de 2013), mas sim espalhando seus Manifestos Rosacruzes, chamando a atenção de outros para a existência de errantes magos azuis neste umbral.
Estou ficando um tanto pedante, talvez, certamente obscuro, quase hermético — mas estas coisas devem ser ditas assim. Ainda é cedo para pôr tudo em nomes, para identificar o que é pelo que é. A essência das coisas só se revela por seu fim, parafraseando Hegel e Olavo. Posso dizer, contudo, que era inimaginável a mim — e provavelmente a muitos outros — há dez meses, que uma cena surgiria de produção e tradução de textos, livros, contos, novelas e artigos nas terras tupiniquins. O desinteresse geral, a falta de articulação, a falta de mecenas e patronos, a calamidade palaciana e a força da catedral pareciam inexoráveis e intransponíveis; contudo, vá e veja: a onça morde o jacaré enquanto os macaquinhos se abraçam nas árvores e “escutam” alguns orangotangos mostrando os sinais que aprenderam com os humanos loiros e estrangeiros.



Excelente.
Mas quanto ao Brasil, faço tenho uma ressalva. Não ponho fé nessa onça não. A onça é gatinho, quando ruge faz "miau".
Eu ponho fé no Caos. Foi o Caos que escolheu a horda de símios que tornariam-se sapiens, foi ele que conduziu o mesmo sapiens entre a fome e o sangue, e foi quem se anunciou entre memes e escritos de qualidade duvidosa.
O Brasil é devoto deste mesmo Caos, e ele produz Ordem. E qual a receita do Caos? A mesma da Esfinge: os poucos que a decifram vencem os muitos, não pela força, mas pela soberania do intelecto.
Os poucos que decifram o Caos e ouvem sua voz sobrepujam a horda de bestas que não o entendem. E os que ouvem o Caos passam a ter ele não o poder político como guia.
Foi o Caos que criou a elite tech nos EUA. Ele criará uma elite aqui também. Só levará mais tempo porque poucos ouvem sua voz.
Rapaz, muito bom.