Você sente as rodas do carro, o barulho do motor, como se estivesse flutuando. Como se estivesse indo embora, como se estivesse longe de tudo e de todos.
Venha até mim, ó Beleza.
Venha até mim, Musa.
Venha até mim e me encha de certezas.
Você se inclina na janela enquanto se enche de remorso. Enquanto se enche de culpa. Sua própria existência é um erro para os demais. O pior inferno reside no sentimento de não existir para os outros. Eles te percebem; você, não. Reflita no espelho, mas não nos olhos deles. Reflita nos seus olhos, mas não nos deles.
Amor e ódio se confundem. Eros e Thanatos. Eros e Eris. Eros e Hades. Ela sussurra novamente… ela grita novamente. Vinte e três anos de incompreensão. Vinte e três anos de desperdício. A Beleza, essa maldita, o ama sem nenhuma delicadeza. Ríspido — é como ela o chama: ríspido.
Você se senta na sua cadeira, seu pequeno altar para sua deusa. Você a implora: mais uma linha… mais uma linha… Onde você esteve esse tempo todo, com seus olhos dourados?
Você repete que é cedo demais. Você repete que a culpa é de Cronos, esse eunuco. Você se sente tão impotente quanto um eunuco. Você conversa consigo mesmo, como um louco. Se te amarem demais… se te amassem demais… te partiriam em mil pedaços e guardariam para si. Se te amassem, te devorariam.
Tálamo e templo. A morte não o quer. A morte nunca o quis — você, que não parece um deus nem um poeta. Você, que invoca as musas com ares de profeta. Você escuta as vozes juvenis em frente à Loja Azul. Ecos do passado.
Se te odiarem demais, atravessarão o espelho do Templo e do Tempo e o esmagarão. Nem a morte o quer; você não é digno dela. Viverá uma longa vida, de novo e de novo. A serpente o rodeia, a serpente o sufoca.
Nenhuma ponte será atraída ao teu ventre. Só as palavras saem de ti. Só as palavras te têm. Só as palavras te querem. Onde estão seus olhos escuros?
Tão escuros quanto o rio, tão negros. Tão escuros quanto a escuridão que o rodeia nesse ritual maldito. As palavras são tudo o que lhe sobra. São sua ponte para Damasco, enquanto as estrelas o empurram em direção ao penhasco. Onde estão seus irmãos? Você carrega a marca de Caim. Seus irmãos são seus assassinos, seus irmãos que sussurram, seus irmãos que não se levantaram quando Deus o puniu. Seus irmãos que o julgam tão impuro.
Acaso vomitaste este tédio sobre a cidade? Não há tédio — só vazio. O jejum ajuda. O jejum clama: uma punição autoinfligida, um sacrifício desnecessário. As palavras caem; as palavras, tão pesadas, tão verdadeiras, caem. Você se enche de certezas, escrevendo para todos e para ninguém. Quem lerá estas palavras? Você se senta e reflete. Ninguém lerá suas palavras. Você não é Pessoa, Drummond ou Azevedo. Não é nobre como Byron, não é brilhante como Yeats, não é poderoso como Crowley.
Você escreve de si e para si. Como ondas inconstantes, você é suave como a água ou violento como a onda. Inconstante. Se fosse calmo como um rio ao amanhecer, belo como um rio ao entardecer — acaso o amariam?
Você sonha com a espada que rompe o ventre. Você sonha com o sacrifício derradeiro. Como a neve coberta pelo sangue do mártir. Como neve de primavera. Você nunca viu a neve, nunca viu a primavera. Não há primavera em meio aos verões escaldantes, em meio aos invernos tempestuosos. Você é como uma tempestade para si e como uma ressaca para os outros. Como pedras, eles se colocam em seu caminho. Como Poseidon, você se choca contra eles.
Você caminha com todos eles em sua mente. Cada lembrança, cada palavra, cada gesto. Você os magoa, você os choca enquanto ri como um idiota. Mais esperto que todos, mais sensível que todos, com mais espírito que todos. Uma grande mentira, consagrada pela tinta que você desperdiça.
Você caminha como um maltrapilho, como um doente. Como um tuberculoso cuspindo e escarrando em todos — todos tão cansados de você. Eles o toleram, e você se pergunta por quê.
Você sobe até o segundo andar e, como um ermitão, espera que, mais próximo do Olimpo, eles o procurem. Você espera que as musas caminhem ao redor, dancem e cantem. Elas mexem os cabelos, os quadris e os seios. Musas inacessíveis. Musas.
Você amaldiçoa Megera. Você se encosta na janela. A cidade se agita, com suas luzes ofuscando as estrelas. Somente Diana o observa — sem nenhuma pressa, ela o ignora. A Caçadora sequer o considera uma caça. Doente. Como um tuberculoso, você se arrasta. Doente.
Cada ato, cada palavra, cada escárnio, cada chalaça são tentativas de ser esquecido. Como um espelho vazio, como a ausência do reflexo, você busca não se refletir. Como um rio sem a Lua. Como a água parada, repleta de insetos, repleta de vermes. Você sonha com os vermes que remoem seu corpo imaginário, seu corpo de estátua, seu corpo esbelto — sem nunca tê-lo, sem nunca tê-los, e eles nunca o terão.
Cada vento daquelas palavras o corta, o remói, o destrói. Um idiota — um personagem tão idiota, construído para proteger algo que virá a ser. Você sequer sabe o que virá, quando virá, se virá. Você espera. Você espera há anos. Você repete que a culpa deve ser do sol. O sol se parte e se reflete nos seus olhos. Tristes olhos.
Se fosse a hora… se fossem as Horas…
Distante. Você precisa ir para longe. Como um estrangeiro em uma praia. Você se exila dos demais, você se isola dos seus iguais. Você, que é tão especial quanto Teseu e tão ordinário quanto um fariseu. O mais comum dos homens. O mais patético dos homens. Eles o escutam, eles sorriem, eles o desprezam, eles o toleram, eles o clamam. O mais genial dos pares. O mais desprezível, repleto de pesares.
Você sabia que era cedo demais. Sabia que era tarde demais. Como um marinheiro, você parte em direção à tempestade. Como seu marinheiro, que o acompanha e o vigia, que não o deixa afogar — mas o isola como um náufrago. Como o guardião do teu sarcófago.