Posso sentir seu hálito
Seu cheiro de flores
De rosas em pleno verão
Posso sentir o fino cobre
Que passa pelos teus dedos
Posso vê-la acima do altar
Com o sol e o mundo
Atrás de si, comigo ajoelhado
Diante de ti
Maravilhosa e terrível deusa
Beleza; que me inflama, que me isola
Que me destrói, que me ama
Que me força a toma-la; esta arma
Esta amargura, esta Poesia
Quando Dionísio passa —
Não há chão, há vento.
A Beleza sorri,
E seu beijo
É o começo da febre.
Pois no deserto
Flores e delírios
Se parecem demais.
Dança o cortejo,
E a Beleza — em transe —
Beija sem saber.
Como os ventos do deserto
A poesia sopra ao ouvido —
Escute o eco.
I
O trem andava devagar, como se temesse alcançar algo. Silencioso e moderno, como um ligeiro escarro à paisagem que cortava, diante daquelas casinhas e fazendas ora arcaicas, ora esparsas, paradas diante do tempo e cortadas pelo vento do trem que se movia apenas um pouco mais rápido que a pequena e agridoce vida dos que moravam nestas fazendas e casinhas.
Diante da janela de cada cabine, se podiam ver os campos ocres, as pequenas construções, as capelas abandonadas, as árvores tão verdes e sinistras à noite quanto a própria noite, quanto a própria lua coberta pelas nuvens que parecia velar pelas árvores e pelos cavalos que dormiam em pé.
Ele não sabia onde iria. Tampouco de onde partira. Todas as estações e todos os trens levavam a outras estações e outros trens.
No colo, um caderno de capa preta. Um achado em uma das estações, rabiscado pela caneta achada em um dos trens. Em letras tortas, ora rabiscadas com raiva, ora com tédio, ora com um certo incômodo, um mal-estar pelo gesto forçoso, se lia:
“Algo tem que nascer. Mas onde está?”
Do lado de fora da janela, num dos pequenos muros abandonados e tomados pela vegetação, ou numa das árvores que insistiam em observar os trilhos, ou numa das janelas pobres das casas pobres das vidas pobres, podia-se ver, quando a locomotiva se arrastava, uma pequena luz vermelha seguida por um sopro e mais uma luz vermelha, seguida novamente por um sopro, um gesto mecânico e quase que sem fim.
Os cigarros estavam quase acabando e as bitucas vermelhas acumulavam-se ao chão da cabine como oferendas para um deus. Algumas cinzas e a fumaça que partia de cada trago lembravam a existência ínfima e a presença passageira daquele fumo.
“Toma, acende teu cigarro
O beijo, amigo, é a véspera do escarro”
Ouvira aqueles versos há quase vinte anos. Quando sequer sabia o que era escarro, quando sentia nojo dos cigarros, e quando até sua sombra lhe era amiga.
E se lembrava atentamente daqueles versos. E, de fato, ninguém assistiu ao formidável enterro de sua última pantera.
Os cabelos escuros começavam a se enrolar e eram cuidadosamente empurrados para trás com suas mãos com cheiro de nicotina e manchadas pela tinta, quando alguns fios insistiam em incomodar a visão. Volta e meia, quando alguma luz exterior ao trem o iluminava e podia observar seu reflexo, via sua barba grande e tão confusa quanto ele, quase que encaracolada. Parecia um rabino, algum ermitão de uma religião do Oriente — nem tão distante, nem tão próxima. Passou os dedos por alguns fios da barba no queixo e coçou o pescoço enquanto observava o caderno. Seu fardo e trabalho.
Como um profeta escrevendo O Livro dos Dias, decidiu que aquele era seu divino labor. Alguns haicais, alguns aforismos, alguns poemas, alguns escritos, alguns romances, alguma profecia deveria sair dali. O jejum ajudava. “Amanhã começarei o jejum”, foi o que falou para si três dias atrás. Um pouco de café quando podia, um ou dois biscoitos, nada mais. Somente o fumo era constante. O jejum era sua sagrada liturgia, seu instrumento de tortura para si mesmo quando os maus pensamentos chegavam, quando lhe assaltava a melancolia.
A melancolia era sua bílis negra. Quando atacada, ou quando o atacava, era um sinal de que ela vinha… Podia ver as sombras do cortejo passando pelo corredor dos vagões, podia ver suas silhuetas esquisitas, suas risadas altas, despretensiosas, estrondosas. Passavam numa dança sem fim, alguns sinos tocavam, algumas garrafas se quebravam, um ou dois gritos — por vezes de prazer, por vezes de dor.
A porta de sua cabine abria e ele era assaltado, tomado e conquistado por ela.
Ela o observava atentamente, sentada do outro lado do banco. As roupas de ambos um tanto amarrotadas, um tanto desleixadas, a memória de uma selvageria, a ressaca de uma falha, o calafrio dos dedos que se entrelaçavam e tocavam, o misto de cheiros e a sensação de fluidos secos. Era bela, belíssima. Seus olhos verdes pareciam duas esmeraldas quando qualquer lapso de luz iluminava por um lampejo a cabine e despertavam nele um misto de medo e admiração. Seus cabelos vermelhos, turvos como o fogo, pareciam chamas que formavam e coroavam aquele rosto pálido como o restante do corpo, exceto pelas maçãs do rosto, rosas como algumas partes do mesmo corpo.
Seus lábios desenhavam um sorriso que não mostrava uma grande alegria, tampouco um fingimento. Parecia mais um desafio, uma rápida zombaria para inspirar não medo, mas coragem. A Verdade é uma mulher, e ela só ama o guerreiro. Sua irmã amava o bravo, mas ela, não; ela amava o sensível, capaz de pôr fogo no mundo inteiro somente pela expectativa de seu beijo diante do espetáculo das chamas.
Ela lhe ditava cada palavra, cada letra. Como uma imperatriz altiva, como uma mãe atenta, como uma professora rígida, como uma amante carinhosa, como uma deusa. Cada linha era como um buquê de flores, como crisântemos cuidadosamente colhidos e arranjados para um cortejo — fúnebre, cerimonial, matrimonial.
Como um menino tolo, inocente, jovem, apaixonado, ele colhia com todo louvor cada palavra sussurrada, cada capricho ditado, cada homenagem que criava para ela na expectativa de uma risada ou um olhar de admiração. Cada agrado postergava sua presença, ela, que é tão volúvel. Ela, que não pode ser ignorada ou desprezada, que não pode abandoná-lo. Não pode, não deve, não pode abandoná-lo. Ela, que sabe que deve abandoná-lo e mesmo assim o tomava para si, para seu séquito, para dentro de si e o alçava para fora de si. A Beleza, esta mulher, esta deusa, é terrível e honra seu nome, e atormenta seu poeta, atormenta seu jovem.
Sua paixão por ela começara na adolescência, quando, talvez por conluio com o Destino, as Horas o levaram até alguns livros esquecidos. Até alguns nomes sem importância aos Homens, mas de grande estima da Beleza. Ela, tão bela, tão sorrateira, despejou suas palavras no ouvido do jovem ephebos e o tirou de todos para tê-lo só para si.
Aquela senhora tão sensual. Aquela mulher dos olhos tão tristes o observava enquanto escrevia para ela, enquanto homenageava seus irmãos e irmãs divinos, seus súditos e parentes distintos, na esperança de tê-la por mais alguns minutos, por mais um segundo. Lembrava-se de tocá-la quando os dedos começavam a adormecer. Lembrava-se do seu cheiro quando a fumaça subia e de seu calor quando o haxixe turvava sua visão. Lembrou-se de seus olhos verdes e da mecha cortando seu rosto quando a porta se fechou com seus olhos.
Quando ela parte, nada muda, mas algo nasce.
II
Você sente as rodas do carro, o barulho do motor, como se estivesse flutuando. Como se estivesse indo embora, como se estivesse longe de tudo e de todos.
Venha até mim, ó Beleza.
Venha até mim, Musa.
Venha até mim e me encha de certezas.
Você se inclina na janela enquanto se enche de remorso. Enquanto se enche de culpa. Sua própria existência é um erro para os demais. O pior inferno reside no sentimento de não existir para os outros. Eles te percebem; você, não. Reflita no espelho, mas não nos olhos deles. Reflita nos seus olhos, mas não nos deles.
Amor e ódio se confundem. Eros e Thanatos. Eros e Eris. Eros e Hades. Ela sussurra novamente… ela grita novamente. Vinte e três anos de incompreensão. Vinte e três anos de desperdício. A Beleza, essa maldita, o ama sem nenhuma delicadeza. Ríspido — é como ela o chama: ríspido.
Você se senta na sua cadeira, seu pequeno altar para sua deusa. Você a implora: mais uma linha… mais uma linha… Onde você esteve esse tempo todo, com seus olhos dourados?
Você repete que é cedo demais. Você repete que a culpa é de Cronos, esse eunuco. Você se sente tão impotente quanto um eunuco. Você conversa consigo mesmo, como um louco. Se te amarem demais… se te amassem demais… te partiriam em mil pedaços e guardariam para si. Se te amassem, te devorariam.
Tálamo e templo. A morte não o quer. A morte nunca o quis — você, que não parece um deus nem um poeta. Você, que invoca as musas com ares de profeta. Você escuta as vozes juvenis em frente à Loja Azul. Ecos do passado.
Se te odiarem demais, atravessarão o espelho do Templo e do Tempo e o esmagarão. Nem a morte o quer; você não é digno dela. Viverá uma longa vida, de novo e de novo. A serpente o rodeia, a serpente o sufoca.
Nenhuma ponte será atraída ao teu ventre. Só as palavras saem de ti. Só as palavras te têm. Só as palavras te querem. Onde estão seus olhos escuros?
Tão escuros quanto o rio, tão negros. Tão escuros quanto a escuridão que o rodeia nesse ritual maldito. As palavras são tudo o que lhe sobra. São sua ponte para Damasco, enquanto as estrelas o empurram em direção ao penhasco. Onde estão seus irmãos? Você carrega a marca de Caim. Seus irmãos são seus assassinos, seus irmãos que sussurram, seus irmãos que não se levantaram quando Deus o puniu. Seus irmãos que o julgam tão impuro.
Acaso vomitaste este tédio sobre a cidade? Não há tédio — só vazio. O jejum ajuda. O jejum clama: uma punição autoinfligida, um sacrifício desnecessário. As palavras caem; as palavras, tão pesadas, tão verdadeiras, caem. Você se enche de certezas, escrevendo para todos e para ninguém. Quem lerá estas palavras? Você se senta e reflete. Ninguém lerá suas palavras. Você não é Pessoa, Drummond ou Azevedo. Não é nobre como Byron, não é brilhante como Yeats, não é poderoso como Crowley.
Você escreve de si e para si. Como ondas inconstantes, você é suave como a água ou violento como a onda. Inconstante. Se fosse calmo como um rio ao amanhecer, belo como um rio ao entardecer — acaso o amariam?
Você sonha com a espada que rompe o ventre. Você sonha com o sacrifício derradeiro. Como a neve coberta pelo sangue do mártir. Como neve de primavera. Você nunca viu a neve, nunca viu a primavera. Não há primavera em meio aos verões escaldantes, em meio aos invernos tempestuosos. Você é como uma tempestade para si e como uma ressaca para os outros. Como pedras, eles se colocam em seu caminho. Como Poseidon, você se choca contra eles.
Você caminha com todos eles em sua mente. Cada lembrança, cada palavra, cada gesto. Você os magoa, você os choca enquanto ri como um idiota. Mais esperto que todos, mais sensível que todos, com mais espírito que todos. Uma grande mentira, consagrada pela tinta que você desperdiça.
Você caminha como um maltrapilho, como um doente. Como um tuberculoso cuspindo e tossindo em todos — todos tão cansados de você. Eles o toleram, e você se pergunta por quê.
Você sobe até o segundo andar e, como um ermitão, espera que, mais próximo do Olimpo, eles o procurem. Você espera que as musas caminhem ao redor, dancem e cantem. Elas mexem os cabelos, os quadris e os seios. Musas inacessíveis. Musas.
Você amaldiçoa Megera. Você se encosta na janela. A cidade se agita, com suas luzes ofuscando as estrelas. Somente Diana o observa — sem nenhuma pressa, ela o ignora. A Caçadora sequer o considera uma caça. Doente. Como um tuberculoso, você se arrasta. Doente.
Cada ato, cada palavra, cada escárnio, cada chalaça são tentativas de ser esquecido. Como um espelho vazio, como a ausência do reflexo, você busca não refletir. Como um rio sem a Lua. Como a água parada, repleta de insetos, repleta de vermes. Você sonha com os vermes que remoem seu corpo imaginário, seu corpo de estátua, seu corpo esbelto — sem nunca tê-lo, sem nunca tê-los, e eles nunca o terão.
Cada vento daquelas palavras o corta, o remói, o destrói. Um idiota — um personagem tão idiota, construído para proteger algo que virá a ser. Você sequer sabe o que virá, quando virá, se virá. Você espera. Você espera há anos. Você repete que a culpa deve ser do sol. O sol se parte e se reflete nos seus olhos. Tristes olhos.
Se fosse a hora… se fossem as Horas…
III
Distante. Você precisa ir para longe. Como um estrangeiro em uma praia. Você se exila dos demais, você se isola dos seus iguais. Você, que é tão especial quanto Teseu e tão ordinário quanto um fariseu. O mais comum dos homens. O mais patético dos homens. Eles o escutam, eles sorriem, eles o desprezam, eles o toleram, eles o clamam. O mais genial dos pares. O mais desprezível, repleto de pesares.
Você sabia que era cedo demais. Sabia que era tarde demais. Como um marinheiro, você parte em direção à tempestade. Como seu marinheiro, que o acompanha e o vigia, que não o deixa afogar — mas o isola como um náufrago. Como o guardião do teu sarcófago.
IV
Como os que invocam espíritos, espíritos ele invocava. Em meio à escuridão, à cama desarrumada, a única luz — escura, propositalmente obscura — iluminava, como um farol oblíquo, aquele quarto maldito. Guiava seu santo ofício.
Os cabelos caíam nos olhos, a retina saltava. Observava a janela, as pessoas, o céu, as estrelas, aqueles que passavam, aqueles que iam e vinham junto aos pássaros. Imaginava se um dia iriam adorá-lo. Se iriam lê-lo, recordá-lo, criticá-lo. Como um corcunda em sua catedral, como um dragão em sua montanha de ouro, ele guardava e aguardava. Para o conquistador da dor, só havia um caminho: o exílio.
As palavras o aglutinavam, as palavras o sufocavam, as palavras o consolavam, as palavras que ele clamava, amava e amaldiçoava.
Ela lhe disse que não precisava amá-la de volta. Eles nunca falaram em amá-lo. Ela disse que não sabia se ele podia amar. Como um senhor de um país estrangeiro, ele fugiu do sol; fugiu de sua missão e de sua prisão. Ele, que queria domar a dor, tentava buscar o que poderia transformá-lo, o que poderia transmutá-lo, o que poderia salvá-lo.
Ele, que era apenas uma sombra de sua ferida. Ele, que começava a ansiar por si, a buscar o exílio da ganância, das perguntas sobre ele, que tentava fugir da necessidade de ser visto — embora pudessem senti-lo, pudessem ouvi-lo enquanto respirava, quando caminhava, quando se arrastava.
Mesmo maltrapilho, eles sabiam que ele era impuro. Que não estava certo de si mesmo, que era sua própria carne que rasgava e escondia. Que não era a si que via.
Ele chegou em três dias. Sem comida, sem cortesia. Os cigarros se acumulavam; as páginas repousavam ao chão, na mesa, na cama, no lixo. Ele olhava para seu corpo — não havia muito o que salvar. Imaginava uma voz materna lhe dizendo para cortar o cabelo, limpar o rosto, tirar a barba, tornar-se, mais uma vez, reconhecível.
Chegara ao ponto. Ao destino que tanto buscou. O que esperava, afinal, depois de todos os lugares por onde passou e que manchou? Ele passava a água pelo rosto e coçava os olhos, segurando os óculos antes de voltar ao labor. Podia-se ouvir, na madrugada, cada tecla sendo pressionada, enquanto o funeral se arrastava de dentro dele para suas palavras, para seus escritos, para seus pensamentos — ora confusos, ora precisos.
Como uma redenção, ele buscava a inspiração. Evocava, do fundo do poço, algum espírito ancestral, alguma fada do umbral, algum deus de seu coração, algum lampejo de paixão, alguma fuga da desolação. Um estranho caminho… um exótico exílio.
Ele poderia retornar ao emprego, conversar com um amigo, buscar os Rosa-Cruzes e pedir-lhes esperança. Mas suas tentativas eram vãs, o dinheiro encurtava… sempre o dinheiro. Sempre Plutão. As veias saltavam as lentes dos óculos e mostravam exatamente onde atingir. Não valia a pena. Como um poeta maldito, deveria escrever e esperar, esperar por seus pulmões apodrecerem, esperar pela tuberculose e pela umidade do doce abraço da morte.
A noite sonhava com Babilônia, com sua estrela de Belém. A cada gota, um amém. Imaginava uma grande inundação saindo de sua mente, corpo e ventre, em uma procissão guiada por sua Senhora, como um soldado alistado em seu exército noturno. Agradecendo a cada refeição, a cada ração.
Marchava de um lado para o outro. Imaginava um convite de casamento, imaginava o cortejo de Dionísio, imaginava as mãos suaves tremendo e as pernas o inflamando para alguma orgia ou festa. Quando estava com eles, sua pele soava e brilhava como a neve; seus risos o atormentavam como gritos, enquanto imaginava se o esperavam como Jesus, se ela o esperava como um rei.
Nada aconteceria se não fosse por uma palavra. Os Amantes repousavam num terreno escuro, enquanto a chuva caía sobre seus corpos, enquanto a lama se acumulava, formando seus trabalhos. Enquanto a fome assolava seu corpo, enquanto a verdadeira fome brotava de seu espírito.
V
Caminhava pelas ruas faminto. Pelas ruínas de uma antiga cidade, pelos casarões abandonados ou convertidos em comércios insignificantes, pelos cais de um rio negro e sujo como óleo, por entre as pessoas que passavam por ele enquanto se sentava em uma mesa— eles passavam por ele, ele os prendia em suas memórias e pensava se valia a pena imortaliza-los, como um escultor enamorado, como um pintor apaixonado.
As memórias e impressões são seu material. Os gestos despercebidos, os olhares tímidos, os cheiros não esquecidos, as falas sem medida. Seu trabalho é essencialmente lembrar, não criar. Nada era seu. Nenhuma letra, nenhuma frase ou sílaba. Elas vêm e vão. São de todos e de ninguém. Escrever sobre si mesmo seria egoísmo; escrever para si mesmo é um martírio.
VI
Enquanto observa seus dedos, sua mão que coça e se avermelha, você se lembra do perfume forte, intenso, que saía de algo bonito e inflamava seu desejo, aumentava sua covardia, que se acomodava nas narinas e impregnava as paredes da mente. Sempre aquele cheiro. Sempre aquele perfume de rosas, de flores, de sais do Oriente e de odores exóticos da Índia.
Intoxicado pela iguaria marroquina você e aquelas sombras, aquelas silhuetas tão conhecidas, se deitavam à espera do sono. Todos aqueles rostos juvenis e corpos assimétricos, todos os pensamentos corrompidos por uma incerteza de afeto. Deve ser insuportável ser um de vocês, disse uma voz enquanto se tornava distante. Insuportável.
VII
Você se lembra dos sapatos escuros ecoando em salões de passos perdidos e bairros antigos, em casebres esquecidos iluminados por luzes neon e por músicas batidas. Você se lembra de cada rosto e da juventude excessiva daqueles tempos. Dos ombros magros e curtos, da barba por nascer, dos cabelos longos e desarrumados. Você se perde nos ecos das câmaras, dos altares e dos bares.
Tudo passado. Tudo havia passado. Alguns ainda se afogavam no passado, se agarravam na âncora da nostalgia enquanto o tempo os destruía, enquanto o tempo os violava, enquanto a vida passava. Equidistante, equidistante de todos, próximo a ninguém.
VIII
Você sente o frio ordinário do piso. Move os dedos dos pés e se lembra da grama úmida, da areia e do banzeiro, dos ventos que anunciavam a chuva, do céu nublado e das cinzas que caíam diante daquele céu igualmente cinza. Dos ventos que vinham do litoral, dos barcos que flutuavam, dos gritos de crianças na piscina, do andar pesado na praia, do estado de transe e delírio que inflamava os pulmões diretamente das montanhas colombinas, trazido e consagrado por algum bandeirante.
Você se lembra da pergunta da cigana — quase como um disparate, um desafio. Você se enche de desprezo. É preciso ser cruel, repete o velho Zaratustra. É preciso ser cruel. Essas memórias te servem como a areia colhida e transformada em castelo: você as molda e tenta construir um muro. Uma muralha de suas lembranças, enquanto te isola, enquanto te inflama, enquanto se imola.
IX
O que você deveria dizer a eles? O que você poderia dizer a eles? Ela diz para escutá-los. Ela lhe diz que deveria ouvir. O que eles deveriam lhe dizer? O que eles poderiam lhe dizer? Você está vivendo por nada, por motivo algum, para fim algum. Sem qualquer tipo de diário ou mapa, de bússola ou calendário. Você se lembra da noite em que seria decidido — sim, decidido — se ela e você seriam amantes. Você se prostrou diante dela e gentilmente caiu no precipício da paixão, movido pela própria angústia. Angústia.
Agradeça ao seu oposto. Diga a ele, mas não diga aos seus irmãos. Agradeça pelo peso que você via nos olhos dela quando seu reflexo aparecia; agradeça por ele tê-lo removido. Agradeça por eles desviarem o olhar.
Escreva seu caminho para Damasco. Escreva suas lembranças. Escreva seu adeus. Espere que eles digam que lhe perdoam, que estão contentes, que se colocaram em seu caminho como a represa de um rio. Agradeça à Beleza, a ela e a eles — estão livres.
X
Você escreve a procura da linguagem certa, do ritmo, da cadência adequada, das palavras belas. Você clama pela combinação perfeita, pelo seu próprio Tetragammaton. Você sabe que eles não ligam, você sabe que eles não leem, você sabe que os olhos estão cegos para você. Você insiste, sua Vontade convertida em fé, sua tolice convertida em inabalável, persiste. Como os antigos escribas você escreve, como os antigos bardos você seduz a si mesmo na esperança de seduzi-la, esta Donzela que fala de ti como uma fera. Como Davi nas águas de Batsebá você sente a culpa e o remorso, como o Rei você enganaria e destruiria seu general, você se sente destruído sem sequer ter traído.
Dos seus lábios secos e quebrados não saem as confissões e iluminações. Somente pelas letras, somente pelo rio de tinta flui o rio da ação. Como um sacerdote quebrado você fecha os olhos e junta as mãos, você se ajoelha e clama à espera de um aleluia para encerrar tudo. Para sua apoteose. A cada respiração você procura, em meio a melodia, uma inspiração. Cada ar desperdiçado por seus pulmões, cada energia desperdiçada pela sua existência, cada verso abortado.
Do alto de seu jardim suspenso você observa. Ela caminha discreta, altiva e felina. Seus olhos te acompanham sempre, mas as palavras cortam como garras, com suas presas ela morde seu âmago. Você foi destruído com um monólogo tão terrível quanto uma simples palavra.
XI
Você se senta soberano como o Rei do Mundo e com a mão repousada ao queixo e os olhos fixos olha para o nada. Você que quis ser tão grande, que acreditava ser tão especial, estava mais próximo do Rei dos Mendigos do que do Senhor dos Benditos. Você, o senhor tristonho, o senhor raivoso, que fala como um patrão e é mentiroso como um falastrão. Você, que cometeu o pior dos pecados, que mentiu para si mesmo e que odeia ao mundo por sua própria miséria. Você, que é um insulto à sua própria existência e que por isso tenta consolar-se trazendo a infelicidade aos outros. Você, que se alegra em ser cruel com o Outro, que desperta as risadas débeis como aplausos de uma plateia celeste.
Pela primeira vez em muito tempo o curso segue, o Logos está ao seu favor. Você sente seu daemon cada vez mais agressivo, você sente sua Musa cada vez mais distante, você sente seu espírito. Se conseguir, será um aristocrata de espírito. Sua pátria é o espírito. Se conseguir, será consagrado na História ao lado dos jovens sensíveis. Será lembrado enquanto jovem e belo, não será parte do mar dos velhos e feios. Você tenta, e tenta de novo. Cada escrita, cada nota neoclássica, lhe é bem-vinda.
XII
Os cabelos escuros se misturam ao travesseiro; os dedos azuis tocam os lábios vermelhos, de novo e de novo — o beijo acabou. Você acende velas e espera que te respondam; pede um sinal ou um santo enquanto mesmeriza Hermes e Mercúrio, enquanto cria mundos em devaneios, sem qualquer plano, enquanto se afunda em seu pântano. Enquanto treme em seu próprio navio à deriva, enquanto se agarra ao mastro — enquanto é observado, docilmente, pelo olhar terno e pelo corpo agitado do seu próprio Argos.
XIII
Você odeia a autopiedade. Não há maior fraqueza do que sentir pena de si mesmo. Você escreve não como um manifesto ou consolo, não como um pedido de desculpas ou sinal de debilidade, mas como uma confissão para todos e um exorcismo de si mesmo. Está tudo ali: a conjuração, a imaginação, o diário, o incenso, a ambientação, os Nomes, a ambiguidade — o primeiro exorcismo literário hermético.
Quem sabe, quando se tratar de odiar, haverá algo para amar. O que você tem desde quarta? Você disse que era tudo novo, a primeira vez: uma doce mentira, uma doce misericórdia, alguma expectativa de perdão. Você adora a derrota — a beleza das causas perdidas e da tragédia. Você perseguiu a tragédia, invertendo o cosmos: um perversor do Nomos. Deveriam, mesmo, deixar-te no abismo do teu paraíso perdido.
XIV
Quem sabe, aos olhos castanhos como mel, você seja este paraíso perdido: tão exótico e tão esquecível quanto Atlântida ou um ordinário fim de semana. Lascivo. Você se afoga sem acreditar nestas águas vivas que te queimam e te iluminam. Neste rio de tinta que flui de ti e transborda ao mundo, que flui desta esquecida Tróia. Você mesmo abriu os portões e esperou os aqueus. Você sabia. Você deixou o mensageiro trazer seu cadáver; você clamou pela agonia e por cada sopro de vida que insiste em ter ao lembrar de cada toque dos Mistérios que covardemente recusou.
XV
Você sobe as escadas enquanto tateia os fios das Moiras. Você bebe os grãos torrados com a barriga vazia enquanto espera que a nova onda chegue. Quase que tramando, vocês tocam aos pés de Sofia. Augusta Sofia. Merlin e Mordred. Apolíneo e dionisíaco. Como Poseidon observando Zeus planando enquanto se senta em uma rocha em meio às suas ondas. Você escuta, você refuta, você reluta. Eles te observam, eles te julgam e te temem. Todo Ícaro terá sua queda.
O que importa é o espírito. A carne clama, a carne padece enquanto você sente o calor do líquido escuro ser convertido pela frieza do líquido puro. Como um mar retraído, você acumula, esperando o sinal das Parsas, esperando o rompimento da represa, esperando o dilúvio. Você observa o lixo em meio às ondas que recuam, a ausência pacífica da ressaca antes do maremoto. O katechon, a catarse, a inspiração. Se aprender um pouco mais, se pensar um pouco mais, se controlar um pouco mais, poderá ter mais uma ou duas das Musas.
Você sente o suave veludo, observa a luz passando pela fina seda do corpo de sua deusa. Venha, Beleza. Venha e me destrua, com todo seu temor e tremor. Você está feliz como nunca esteve, produtivo como nunca esteve. Ela te escolheu, e isso a enche de ternura.
XVI
Você se ajoelha diante dela, diante de suas damas com seus vestidos brancos tão puros e imaculados quanto sua Senhora. Com seus colares dourados e altivos, com seus olhos e ares de virgem pálida. Ela ergue as mãos e lhe promete. Torne-se digno.
Você a segue como um girassol diante do astro. Você queima como uma estrela cadente. Você se acomoda na sombra porque teme a luz. O fantasma te acompanha, seu Virgílio que tenta tomar forma e sussurra, que lhe dá as palavras, que lhe diz o que dizer, que te comanda, que te atormenta, que te enlouquece — ofereça-se, ofereça, oferenda, aos seus amigos poetas, à sua liturgia, ao seu ritual — ofereçam-se, ofereça-te, oferenda, à sua criação, sussurre e escreva, diga e escreva, ofereça e escreva.
XVII
Você a machuca com seu olhar, você a expulsa com suas palavras curtas e diretas, você esconde sua tristeza do coração dela e a transforma em palavras que nunca serão descobertas. Sacrifício e oferenda. Você se oferece, você se sacrifica, você banha com seu sangue a imaculada deusa para se esconder, para se esquivar. Você deixa fluir o rio da Forma com toda sua força e destruição para implorar pela Misericórdia. Força. Onde está sua fortaleza? Você expulsa Vênus para correr com Pã. Você oferece sua prosa ao cortejo dionisíaco para escapar de Minos.
Tudo que você toca se converte em merda, fezes. Ofereça fezes. Minos ao contrário. Minos e Tálamo. Você esculpe em seu pântano. Os odores te perseguem, as palavras te anoitecem. Você entra em transe, em delírio, e corre com os faunos. Você procura seu Fausto. Você se imaginou tão genial e lascivo quanto Mefistófeles. Você se enganou e agora se contrai em espasmos. Você sente a raiva fluir — estava nos olhos. Nos olhos. Ofereça os olhos — sua ponte e espelho.
XVIII
A purificação como forma de expiação. Você se senta debaixo da Árvore e busca escrever sua própria Tábua de Esmeralda. Você tenta escrever sua própria Ilíada, como se isso valesse sua vida. Diante do sol escreveram Iluminações; diante da escuridão, você escreve suas Hesitações. Você sente o nojo repulsivo do outro lado de Janus. Horrendo refletir nos outros — e em você mesmo.
XIX
Sua temporada no inferno continua, e você se acostuma. Como um louco em sua jornada você busca mais tormentos, mais demônios. Sua companhia até o Vale, sua companhia até o Purgatório e além. Você foi levado pelo barqueiro à mando de Beatriz, entretanto não é Dante. É tão patético quanto Dom Juan, afinal, onde está sua Beatriz? Não há, nunca haverá. Você e os olhos sem esperança. Um amante errante. Um poeta da náusea.
XX
Ela diz, com a voz suave, que te compreende. Que está cheio de som e fúria, que isso é belo. Não é belo machuca-la. Você joga sua coroa de flores ao mar e grita como um bêbado, um bárbaro das artes, um pedinte em meio às noites brancas após afastar Luna.
Estação vazia.
Minha geração espera
Um deus que não vem.
Tudo emula o ser.
Mas eu sou a palavra
Que falha ao nascer.
E da ressaca do amor
Só vejo Eros —
Como delírio desértico.